TRUE NODE cauda
« No nosso corpo, condensamos as memórias de milhões de indivíduos de espécies e de épocas diferentes. Inversamente, tudo em nós é o pressentimento de um futuro que nenhuma profecia poderá atingir: dentro de algum tempo, seremos a vida de uma mulher ou de uma nuvem, a respiração de uma criança ou de uma serpente, o pensamento de um ladrão ou de um rei. Somos parte da matéria do mundo. somos o que resta no resto de todas as coisas do mundo. É por esta razão, e somente porque, de cada vez que dizemos “eu sou”, fazemos ressoar todos os “eu sou” no universo, porque a nossa consciência coincide virtualmente com o mundo, que podemos habitá-lo. Cada um de nós condensa o passado e antecipa o futuro de todas as formas de vida que podemos viver historicamente. Cada um de nós contém as palavras do diário do globo.» Emanuele Coccia, A Vida das Plantas - Uma Metafísica da Mistura No seu mais recente livro “A vida das plantas: uma metafísica da mistura”, Emanuele Coccia começa por afirmar que uma planta “é a forma mais intensa, a mais radical e a mais paradigmática, do ser-no-mundo”. Como justifica ao longo de vários capítulos, a planta representa o vínculo mais estreito e elementar que a vida pode estabelecer com o mundo e, simultaneamente, ser o “observatório mais puro para se poder contemplar o mundo na sua totalidade”. É como se as plantas vivessem simultaneamente duas vidas: uma aérea, banhada e imersa na luz, feita de visibilidade e de uma intensa interação interespecífica com as outras plantas, outros animais; a outra ctónica, mineral, ontologicamente nocturna, em comunhão sinergética com todas as formas de vida subterrâneas. As raízes são, assim, o corpo “secreto, esotérico, latente, que desce ao centro da terra conduzindo a planta numa direção que é exactamente oposta à dos seus esforços à superfície”, enquanto o seu gémeo aéreo contém o impulso vertical, “para o alto e para o Sol que anima a planta”. Tal como se para cada movimento do nosso corpo houvesse um outro que fosse em sentido oposto, mas que não se altere entre si, nem se exclua, tornando: “o ser de um mesmo indivíduo, o único que pode reunir no seu corpo e na sua experiência a terra e o céu, a pedra e a luz, a água e o sol”. Desta forma, poderíamos dizer que todos os seres têm o seu negativo, trazem consigo o vazio, são matéria e antimatéria, corpo e espírito, passado e futuro. Como se um lado constituísse aquilo que há de mais interior e mais inconsciente: as emoções, os medos, o instinto, a intuição; e o outro o “eu” exterior: a viagem em direção à individuação, o desejo expansivo, o fogo. Mas aqui, “as coisas e as ideias misturam-se umas com as outras sem se preocuparem com os interditos e as orientações, circulam livremente”. Tudo é flexível. Tudo pode constituir-se como linguagem, as coisas, as ideias, as energias, as mais distintas matérias estão ligadas por fios obscuros ou invisíveis, de atracção ou repulsão, por vezes espirituais, energéticos, físicos. Mais do que uma relação de forças, onde um lado predomina sobre o outro, trata-se da possibilidade de continuidade, complementaridade. O movimento vital necessário ao avanço do tempo, da renovação, da liberdade e da perenidade como representado na mitologia o símbolo do Ouroboros, uma serpente-dragão que “morde a sua própria cauda”. Animais, plantas, fenómenos atmosféricos comuns ou extraordinários, os elementos e as suas combinações, as constelações, os planetas: há um pressentimento intemporal de que todos os seres são ligados por uma consciência global e colectiva. Neste eco, a exposição cauda, primeira parte do ciclo True Node, coloca em diálogo diferentes artistas, com diferentes gramáticas visuais na construção da nossa presença no mundo, e de como investigar a face oculta do visível, os pontos de intercepção. Ana Morgadinho, na instalação “SOLO”, composta por taipa e palha, aceita-se na impossibilidade da escultura abandonar o espaço para onde foi concebida. Como um gesto de fé, pelo empreendimento e minuciosidade da execução, a forma é prenúncio e eco. O peso, densidade e a imobilidade conferem a estabilidade enquanto a terra contém histórias, geografias diversas, o poder transitivo e simbólico da energia que a transporta. Por sua vez, em “5 ao cubo” de Ana Rafael, são as as gravuras recortadas e reorganizadas que tornam múltipla a aproximação ao objecto, a sua projecção no espaço e consequente desdobramento. Como um tempo perdido, na criação intuitiva de novas regras ou uma grelha de afectos. A afixação na parede e os efeitos da sombra, os contrastes, podem lembrar rasuras, portais onde as formas se misturam, criam manchas, padrões como caudas de um cometa em andamento. Também João Pedro Trindade deixa revelar nas suas obras vestígios da sua acção sobre os materiais e a reverberação desses gestos. As frágeis esculturas de espuma de florista são impressas de diversos elementos vulgares do seu atelier: tijolos, partes de escadas, fragmentos do cavalete, ou um pedaço de madeira. No seu verso, contudo, resistem as impressões digitais, as polpas dos dedos da mão do artista que marcam a superfície lisa e atestaram a sua imutabilidade, os indícios da manualidade, deste fazer. À semelhança, David Correia Gonçalves apresenta na sua instalação em plástico, papel, grafite e epiderme, “TOUCH SCREEN PRINT”, partes do seu corpo em suspenso. Impressas em grafite , são memórias, recortes de uma individualidade, por ventura, em transição, repouso. Extensões do próprio artista, a metodologia é também o acto de reafirmar o desenho pelo corpo. Aqui, o corpo e a suas formas é material de trabalho e de escrutínio, como o compromisso com a pele que o releva, a pegada, o que precede. Assim, entre mapas pessoais, cruzamentos e lembranças, geografias de afinidades, atentamos os desenhos são feitos a partir do caminho traçado. Como aponta o primeiro eclipse do ano que chega com a exposição: o dragão comeu o Sol, a Lua, ou a sua própria cauda? Carolina Trigueiros |